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terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A pastora envangélica que é ministra no Brasil

Estamos perante um The Handmaid’s Tale no Brasil?

© SERGIO LIMA/GETTY Expresso

















Bolsonaro acaba da indicar para ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos uma pastora evangélica, antiaborto, contra a ideologia de género, que pretende pôr meninos a oferecer flores às meninas nas escolas porque “elas são mais frágeis” e que defende que “é o momento de a Igreja governar”. Será ao acaso ou estamos a assistir a uma retaliação contra os milhões de mulheres que fizeram frente à eleição do futuro Governo?
Sim, a advogada Damare Alves tem um percurso profissional muito ligado à defesa das crianças, principalmente no que respeita ao abuso sexual de menores, e com trabalho de terreno no que toca à proteção de mulheres vítimas de violência doméstica. Numa primeira análise até podemos enaltecer tudo isto, e considerar que o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos está bem entregue. Mas depois paramos para ler nas muitas entrelinhas de diferentes discursos públicos desta pessoa e torna-se assustador perceber que esta pasta vai ser entregue a alguém que exerce um cargo de líder religiosa e que, em vez de separar as suas crenças do seu trabalho político, defende publicamente que a Igreja devia ter uma palavra no rumo do país. Estamos obviamente mal quando a religião se intromete diretamente no Governo de uma nação laica, e é isso que nitidamente vai acontecer.
Os contornos são outros, mas é fácil fazer uma analogia à distopia do livro e série The Handmaid’s Tale. Eis o que poderá acontecer no Brasil quanto aos direitos femininos: com uma mulher a servir de carrasco no processo, continuaremos a respeitar e a proteger as supostas mulheres ‘de bem’ e a discriminar as que não alinharem com as expectativas sociais e religiosas cheias de estereótipos sobre o verdadeiro papel da mulher no mundo, as consideradas ‘de mal’. E de acordo com a futura ministra da pasta que deve proteger e contribuir para a evolução dos direitos femininos, “a mulher nasceu para ser mãe”, é esse “o seu papel mais especial”. Enquanto mensagem simbólica passada às massas, esta frase não podia ser mais redutora e preconceituosa face à realidade das múltiplas dimensões da vida no feminino.

Desconstrução da heteronormatividade é a destruição da família tradicional, diz ela

Há muito de populista e de contraditório nas declarações de Damare Alves, e esse é provavelmente o primeiro sinal altamente perturbador quanto ao que estará para vir. Por um lado, a futura ministra alega que uma das suas metas é a defesa da comunidade LGBT e diz que “se for preciso” estará nas “ruas com as travestis, na porta das escolas com as crianças que são discriminadas”. Por outro, usa o mesmo discurso populista para dizer barbaridades como esta: “Desconstrução da heteronormatividade? Deixa eu traduzir isso: é a destruição da heteronormatividade. Deixa eu falar mais claro: é a destruição da família tradicional”, aquela que Damare Alves considera o exemplo “saudável de família” para o seu país. Ministra do Direitos Humanos, certo?
A advogada, que não é fã da educação sexual nas escolas, afirma também com todas as letras que é contra a ideologia de género, algo que a seu ver apenas tem o condão de deixar as crianças “confusas” e “malucas”. Quanto aos mais novos, diz que pretende gerar uma revolução cultural. Como? Assim: “Todos os meninos vão ter que entregar flores para as meninas nas escolas para entender que nós não somos iguais. Quando a teoria de género vai para a sala de aula e diz que todos são iguais, as meninas podem levar porrada, porque são iguais aos meninos. Somos frágeis, mas somos muito especiais, fazemos coisas que eles não conseguem fazer”, declarações feitas numa entrevista ao Globo. Quão perversa é esta linha de pensamento que, em vez de apelar à formação pela igualdade entre todos nós, prefere
acentuar a construção de diferenças que fizeram das mulheres vítimas de tantas formas de agressão até aos dias de hoje? Não é com flores e reforço de estereótipos entre seres humanos que vamos travar a violência e a discriminação, é com educação, respeito e noção de igualdade.

Aborto: “Esta pasta vai lidar com proteção de vidas, não com morte”

Outra das frases recentemente ditas pela futura ministra vai ao encontro do tema aborto, e é bastante reveladora do retrocesso e conservadorismo que o Brasil deverá ter de enfrentar em 2019: “Nenhuma mulher quer abortar (...) Esta pasta vai lidar com proteção de vidas, não com morte”. O que parece ficar aqui esquecido é quando falamos de leis antiaborto falamos precisamente de desproteção de vidas: as das mulheres que não têm dinheiro para abortar em segurança. O aborto vai continuar a existir e a ser um privilégio apenas de quem tem dinheiro para o fazer em condições plenas, maioritariamente em clínicas fora do país. Pessoas que têm poder económico para fazer valer a sua liberdade e vontade individual (é disto que se trata), não arriscando com isso nem penas de prisão, nem a sua saúde ou a própria vida. A quem não tem dinheiro resta arriscar abortos clandestinos, feitos sem condições básicas de higiene, muitos deles vendidos por verdadeiras redes de extorsão de dinheiro a mulheres pobres, em situação de desespero. Se queremos falar de proteger vidas, pensemos nestas. Enquanto futura titular deste Ministério, Damares Alves deveria ter a obrigação de o fazer, em vez de deixar de lado esta parte da população feminina: mais concretamente, no início deste ano o Ministério da Saúde estimava que sejam feitos mais de um milhão de aborto ilegais todos os anos. Cerca de 15 mil mulheres chegam anualmente ao hospital com complicações decorrentes de abortos feitos clandestinamente. À volta de duas mil morrem dessas mesmas complicações. Quem protege estas mulheres?
Se por um lado Damare Alves promete uma luta contra a violência sobre as mulheres, por outro também diz que o “padrão ideal de sociedade” seria a mulher ficar em casa, enquanto o marido trabalha para a “sustentar e encher de joias e presentes”. Um padrão ideal que, afirma, “já não é possível” nos dias de hoje, e que por isso as mulheres têm de ir para o mercado de trabalho. Nesse sentido, garante que a igualdade salarial é outras das suas grandes lutas a travar, valha-nos isso. Mas o que me parece importante deixar claro é que isto da paridade no mercado de trabalho não é urgente apenas porque o dito “padrão ideal” descrito “já não é possível”. Isto é urgente porque esse mesmo padrão tem e sempre teve pouco de ideal. Aliás, esse padrão é mais do que reconhecido enquanto catalisador não só de desigualdade, mas também da mesma violência de género que a ministra se compromete a combater. Vamos lá ver se nos entendemos: as mulheres não querem estar no mercado de trabalho porque os homens já não as conseguem sustentar. As mulheres querem, sim, ter livre arbítrio em relação a todas dimensões das suas vidas, a profissional incluída. As mulheres querem independência, liberdade, dignidade, direito de escolha e tratamento igualitário enquanto seres humanos.
Não me parece que seja ao caso que a pessoa eleita para esta pasta defenda esta linha de pensamento, nem tampouco que seja uma mulher. Basicamente, parece-me uma retaliação bastante simbólica contra todas as mulheres que fizeram frente à eleição deste Governo, e que foram impulsionadoras de verdadeiros motins anti-conservadorismo e desigualdade social. Motins que descredibilizaram o futuro Presidente e que, quer queiramos quer não, abalaram a força e a credibilidade do futuro poder. Responsabilizar uma mulher pelo silenciamento e castração do progresso dos direitos das demais é uma jogada estratégica no que toca a tentar fomentar a desunião e desconfiança entre a população do sexo feminino.
A mesma que, como já ficou provado, pode ser o motor de arranque para uma revolução caso o país entre num género de Idade das Trevas dos tempos modernos.
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